24.11.05

Karmox


22.11.05

O amor é uma companhia

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se não a vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro

Impasse

O que há de pecado
no carinho voltador
ora brando,
bem sabido de ser úmido
e íntimo,
ora ávido,
mas ainda lúbrico

e doce

é ser ele feminil.

***

Dentre elas não posso ter à vista
melena clara, vermelha ou negra
de cabeça moça.

Fogo de guedelha
subindo pelas entranhas
calor e tremor tomando o corpo.

Centelhas proibidas para mim,
posto que sou ela.


***

E no sentir aquele dedo era gélido...
E contornava tão bem pela atermia...
Prolongou o momento de etéreo
que há tanto eu me devia.

14.11.05

Memórias de outra vida

De vez em quando tenho acertos de memória. Lembro:

clara e vivamente do alimento subindo de volta sem chegar nem perto da boca do estômago;
da fronha ainda encharcada quando já é de manhã;
do kajal preto atuando magicamente no disfarce das pálpebras;
das escadas triplicando o número de degraus pra tornar o térreo inatingível;
da calçada que caminha sob os pés empurrando o corpo pra onde ele costuma ir;
do cheiro insalubre da rua;
dos ônibus negros e sem letreiros;
da surdez.

Caminhar em direção ao trabalho: viagem insólita.

*****

Lembranças me põem a ponto de revelar coisas não ditas.

Queria comprar uma arma pra começar de vez essa guerra mixuruca contra o espelho. Sim, portando uma Anna Pegova 46 eu desbravaria territórios inóspitos e teria a meus pés povos que antes nunca pensei domesticar. Ahhhh... Eu lambuzaria meu rosto com o sangue frio de inimigos-defuntos e pisaria as mãos de sobreviventes chorosos, iria caminhando alegre por campos cheios de vazios.

Mas toda essa atitude belicosa que me acende agora, se levada a cabo, por mais que me rendesse ricos despojos, traria consigo grandes baixas. Não, não quero outras, por favor. “Bandeira branca, amor, não posso mais. Pela saudade que me invade eu peço paz”.

Por quem?

Letras indignadas que brotam de dentro de um escritório úmido, frio e escuro, numa segunda-feira de sol pré-feriado. Formam textos verdes, como se verá. Líquens na tela. Por ora, é isso.